domingo, 7 de abril de 2013

Comentário ao artigo "Filosofia a Serviço da Fé" de Joel Pinheiro

No dia 1 de abril o editor da revista Dicta & Contradicta, Joel Pinheiro, publicou um post na página dessa revista um artigo intitulado Filosofia a Serviço da Fé. Várias das opiniões ali expressas merecem ser comentadas e meu intuito é oferecer aos interessados uma outra visão do tema. Os meus argumentos e observações não chegam perto de esgotar todas as possibilidades de esclarecimentos e ponderações que um intelectual bem formado na filosofia cristã poderia dar. Vou me ater, portanto, apenas aos pontos que mais me chamaram a atenção e deixar ainda de lado tantas outras considerações que me vieram à mente.

A primeira afirmação que gostaria de comentar é a seguinte:

(...) o ensino filosófico por eles praticado matava a filosofia nas almas dos melhores, ou seja, daqueles que não se satisfaziam simplesmente aceitando doutrinas, mas que queriam filosofar.

O ensino filosófico a que o autor se refere é o tomismo. Em primeiro lugar, é necessário entender o contexto e a finalidade do ensino da filosofia tomista. O contexto são os cursos de filosofia para a formação de sacerdotes e leigos cristãos. A finalidade era a formação básica nessa filosofia e não a formação de filósofos. 

A formação dos cristãos que recebem a missão de ensinar deve estar baseada em um sistema filosófico compatível com os ensinamentos sagrados. Isso é evidente, pois se não fosse assim, haveria uma contraposição entre o conhecimento filosófico e o conhecimento teológico. Tal contraposição é problemática pois, nesse caso, ou se admite que Deus é contraditório, tendo criado uma realidade inconsistente, o que é um absurdo, ou então se exclui alguns dos dois conhecimentos. 

Nesse sentido, a filosofia tomista foi sendo considerada pelo magistério, ao longo da história da Igreja, como um sistema plenamente compatível com a fé e ao mesmo tempo robusto do ponto de vista formal.  Portanto, isso explica o motivo por que tenha sido incentivado o seu ensino aos cristãos, sobretudo sacerdotes e leigos que receberiam a missão de formar outros fieis. 

Os que aceitavam esse sistema filosófico não necessariamente eram maus intelectuais e nem se pode afirmar categoricamente que eram maus filósofos. É possível que alguns desses tenham de fato se convencido do sistema tomista depois de tê-lo compreendido bem. Isso não significa a morte da filosofia. Significa apenas que esse sistema foi aceito por aqueles filósofos como uma resposta definitiva para muitos dos problemas filosóficos. É análogo ao que ocorre com a teoria Newtoniana entre os físicos. Dentro de seu escopo de aplicação, ela é bem aceita pela a maior parte deles, mas isso não significa a morte da física. A morte da física aconteceria, ao contrário, se os físicos deixassem de aprendê-la, substituindo-a por uma doutrina pessoal, com o risco quase certo de ser mais ineficiente do que a Newtoniana.

Além disso, a frase acima contradiz todos os exemplos que o próprio autor destaca. Todos eles, de acordo com o próprio autor, passaram pelo ensino dessa filosofia, e, ao contrário do que é afirmado na frase, não matou a filosofia nas suas almas. A inconsistência da frase se agravaria ainda mais se o autor  afirmasse explicitamente que os autores destacados eram os melhores e os únicos que não se satisfaziam aceitando doutrinas.  Embora isso não seja afirmado explicitamente, está subentendido.  

A segunda afirmação que merece ser comentada é a seguinte:

Tanto em Landim como em Kenny, o tomismo patrocinado pela Igreja apareceu como algo sem sentido, descolado de qualquer preocupação real e cujas respostas fáceis não convenciam.

Não está totalmente claro se essa frase significa apenas a opinião de Landim ou Kenny, ou se também expressa a opinião pessoal do autor. Qualquer que seja o caso, essa é uma afirmação forte que, ao meu ver, tem muitos problemas. 

Analisemos por partes.  O tomismo patrocinado pela Igreja apareceu como algo sem sentido. Em primeiro lugar, é difícil falar em um autêntico tomismo que não esteja estreitamente relacionado com a Igreja. São Tomás não era um filósofo imbuído do espírito de ofício que o autor do artigo parece ter como ideal. Um filósofo cristão, como São Tomás de Aquino, não é um livre pensador. Toda sua filosofia tinha um princípio vinculante que era a sua fé. 

O tomismo - que em sua integralidade só pode ser patrocinado pela Igreja - não apareceu como algo sem sentido, mas como algo repleto de sentido, que era proporcionar uma formação filosófica robusta e plenamente compatível com a fé cristã. Esse sentido tinha sim uma preocupação muito real, bem concreta, de fazer frente às doutrinas modernas claramente conflitantes com a teologia católica. E, ao contrário do que se afirma, as respostas da metafísica de São Tomás não são nada fáceis de entender. Uma vez bem entendidas, as pessoas imbuídas do mesmo espírito de São Tomás, isto é, tendo a fé como princípio vinculante do pensamento filosófico, costumam se convencer dos seus argumentos, ou pelos menos, admirá-las como boas soluções para problemas difíceis.

Pode ser que a crítica não seja exatamente a São Tomás, mas ao neotomismo. De qualquer forma, o neotomismo que é objeto de crítica do texto não é uma falsificação ou deformação do sistema de São Tomás, mesmo que as transposições didáticas dos manuais sempre tenham suas deficiências e limitações. 

A terceira frase que quero comentar é a seguinte:

Dado isso, pergunto-me se a postura filosófica, ou talvez antifilosófica, da Igreja Católica, não tenha contribuído para a perda da fé de tantos intelectuais que começaram seus estudos imbuídos de convicções religiosas ou ao menos inquietações espirituais.

Se de fato os intelectuais começaram seus estudos imbuídos de convicções religiosas, nenhuma postura filosófica ou antifilosófica poderia ter sido capaz de contribuir para a perda da fé. Pois, se de fato é uma convicção religiosa, toda  e qualquer filosofia que esses filósofos poderiam conceber teria que necessariamente incluir a possibilidade de existência do conteúdo da sua fé. Com esse espírito, ainda que viessem a se sentir insatisfeitos com o tomismo de manual, o talvez até mesmo com o tomismo perfeitamente compreendido, deixando bem claro as razões de sua insatisfação, muito poderiam contribuir com as suas soluções. Veja que, ainda que fossem inicialmente vistos com desconfiança, como o próprio São Tomás foi em seu tempo, isso não afetaria em nada a fé deles, se fosse de fato uma convicção. Seria uma fé bastante duvidável essa que se perde porque a maioria dos seus irmãos na fé não concordam com sua visão filosófica pessoal.

Ainda outra frase:

Ao mesmo tempo, os meios religiosos não fomentaram, nem de longe, o tipo de pensamento necessário ao amadurecimento filosófico; e agora correm atrás do prejuízo. Praticamente toda a elite intelectual do mundo vive alheia, quando não avessa, à ideia de religião. A culpa não foi da malvada modernidade antropocêntrica…    

Que os meios religiosos não tenham fomentado, nem de longe, o tipo de pensamento necessário ao amadurecimento filosófico, é uma afirmação categórica, sem nenhuma justificativa realmente objetiva. Cabe ao autor dessa frase definir claramente o que na sua visão é maturidade filosófica e depois mostrar claramente que os meios religiosos não o fomentaram. Sem isso, não tem nem o que discutir. Também gostaria de saber quem está correndo atrás do prejuízo, e o que o autor realmente quis dizer com essa frase dotada de uma imprecisão tão grande que me parece lamentável até para a linguagem informal.

As duas frases seguintes ainda deixam subentendido que a atitude antifilosófica da Igreja teria sido a culpada pelo fato de a elite intelectual do mundo viver alheia, quando não avessa, à idéia de religião. Em primeiro lugar, seria necessário restringir essa frase ao mundo ocidental; seria muito difícil aplicar essa frase - que já me parece uma generalização questionável - ao mundo islâmico, por exemplo.  Ora, se a modernidade de fato deu à luz uma infinidade de filosofias e disciplinas do conhecimento avessas à religião, como o marxismo, o darwinismo e a psicologia freudiana, é evidente que boa parte do mundo intelectual, que incorporou essa doutrina, será alheia, ou avessa, à religião.

Seria uma ingenuidade pensar que se a Igreja tivesse aderido oficialmente a essas tendências, então teria  protegido o mundo intelectual da aversão à religião. Pelo contrário, é evidente que teria trazido para o seu próprio seio a aversão a ela mesma. E foi de fato o que aconteceu quando essas doutrinas foram introduzidas, nos anos sessenta, e o tomismo recomendado por Leão XIII e Pio X abruptamente renegado ao total esquecimento, salvo poucas exceções.      

Por último, gostaria de fazer uma avaliação pessoal a respeito do sentido desse post do editor da Dicta. Acompanhei o primeiro ano dessa revista e sei bem que nessa época adotava-se uma linha editorial que tinha como critério a complementariedade entre fé e razão. Posso afirmar com certeza que essa era a visão de seu primeiro editor. 

Alguns de nós acreditamos ingenuamente que a Dicta seria uma revista com critério cristão. Por enquanto, ainda ficamos esperando por uma outra revista que tenha a coragem de se denominar, simplesmente, "filosofia cristã".

Adendo ao texto, de 16 de abril 2013
Após a publicação desse comentário, o Joel Pinheiro o respondeu no site da Dicta http://www.dicta.com.br/filosofia-a-servico-da-fe/. Mantenho todas as minhas opiniões no que diz respeito à filosofia cristá, mas admito que possa ter feito uma avaliação imprecisa sobre a relação entre a Dicta e o Opus Dei. Por isso, omiti o penúltimo parágrafo e modifiquei o último do texto original. 

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